BOITE KISS E O TRIBUNAL DO JÚRI – Eudes Quintino de Oliveira Júnior
No processo instaurado para apurar os responsáveis criminalmente pelas mortes de 242 pessoas e ferimentos em outras 639, que tramita desde o ano de 2013 pela comarca de Santa Maria/RS, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça reconheceu a presença de dolo eventual nas condutas dos quatro acusados. A decisão foi proferida diante dos recursos interpostos pelo Ministério Público e pela Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), com a admissibilidade da sentença de pronúncia, autorizando, desta forma, o julgamento pelo Tribunal do Júri da comarca gaúcha. Em consequência, caiu por terra a tese de conduta culposa pleiteada pelas defesas.
Trata-se, na realidade, de um lastimável fato que causou profundo abalo nacional em razão da quantidade de vítimas fatais, na maioria estudantes universitários. O relator do recurso foi incisivo em afirmar a presença de elementos que evidenciam a razoabilidade da acusação por dolo eventual, fazendo ver que os “fatores objetivos que permitem inferir que os recorridos estavam cientes desses riscos e das possíveis consequências que poderia causar o menor incidente decorrente do uso de fogo de artifício sabidamente impróprio para ambiente interno, acionado e direcionado a material altamente inflamável, a poucos centímetros de distância da chama”.[1]
O dolo eventual, numa definição desprovida de teor científico, nada mais é do que a modalidade em que o agente não quer o resultado, embora por ele previsto, mas assume o risco de produzi-lo. Quer dizer, os ingredientes do dolo primário encontram-se agrupados na conduta do agente. Nosso Código Penal trouxe expressamente sua previsão, em seu artigo 18, I, ao adotar a Teoria do Assentimento: “… assumiu o risco de produzi-lo”.
Com efeito, nosso CP baseou-se na teoria criada pelo alemão Reinhart Frank: Teoria Positiva do Conhecimento, que nada mais é do um critério bastante prático para identificação do dolo eventual. Para referido autor há dolo eventual quando o agente diz: Seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir. Denota-se, claramente, a indiferença do agente quanto ao resultado.
Sua caracterização, desta forma, não exige nenhuma dose de volição voltada para a obtenção de um determinado resultado, ciente, no entanto o agente, que possa ocorrer evento diverso, mas, mesmo assim, assume o risco de produzi-lo. Basta, para tanto, diante das circunstâncias apresentadas, possa ser avaliada a situação de perigo maior, mesmo que não se encontre no seu canal volitivo.
Realmente, levando-se em conta a impossibilidade de adentrar na psique do agente, se faz necessária a análise das circunstâncias que emanam do caso concreto, tais como os meios empregados, o comportamento do agente, sua personalidade entre outros.
A esse respeito, o STJ já se manifestou de maneira contundente: “O dolo eventual não é extraído da mente do autor, mas, isso sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que o resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas, isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível, provável.”[2]
Desta forma, prevalecendo a decisão, o processo será encaminhado para o Tribunal do Júri de Santa Maria em razão da legitimidade conferida constitucionalmente para tanto. Trata-se de uma delegação de poder, de uma transferência de legitimidade para que a comunidade local possa julgar seus pares.
A situação comporta uma explicação mais detalhada do novo rumo processual. O Tribunal do Júri é composto pelo presidente, que é um juiz togado, além de sete pessoas do povo que serão sorteadas dentre aquelas alistadas, cidadãos com mais de 18 anos e de notória idoneidade, formando assim o Conselho de Sentença. O jurado não precisa ser um conhecedor do Direito. Daí que não ficará adstrito à avaliação das provas que alimentam o processo como um julgador profissional. É sim um julgador de fato e de um fato e para tanto a ele é conferida total liberdade de julgar de acordo com sua consciência e os ditames da justiça, segundo o compromisso que assume após ter sido formado o Conselho. Irá julgar de acordo com sua avaliação íntima, território povoado unicamente por ele e que irá traçar as balizas de seu julgamento, levando em consideração sua experiência de vida, seu senso de justiça, os costumes do local em que habita, observando que está em discussão um fato considerado criminoso e que foi praticado por uma pessoa do mesmo grupo social. Em tal munus publicum sua decisão é soberana.
Eudes Quintino de Oliveira Júnior, promotor de justiça aposentado/sp, mestre em direito público, pós-doutorado em ciências da saúde, reitor da Unorp, advogado.
[1] https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI304743,21048-Boate+Kiss+Reus+vao+para+juri+popular+decide+STJ
[2] REsp 247.263/MG, rel. Min. Felix Fisher, 2001.
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