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O ÁS DE ESPADAS – Walter Paulo Sabella

 

        O ÁS DE ESPADAS

 

Walter Paulo Sabella*

 

        Eric Arthur Blair teve acesso à galeria dos grandes escritores ao escrever uma história em que os animais se revoltam, expulsam o granjeiro de sua propriedade, dominam as capacidades próprias da linguagem humana e interagem com os homens.

Ditas assim as coisas, talvez não seja instantânea a conexão dessas primeiras linhas com o pseudônimo literário do autor –George Orwell- ou com o título da fábula que o consagrou – Animal Farm-, em português A Revolução dos Bichos, na tradução de Heitor Ferreira, de 1964.

Muitos, em abordagem reducionista, disseram da fábula de Orwell tratar-se de uma metáfora satírica da ditatura stalinista. Mas vão além as dissecções críticas embutidas na narrativa. É a natureza humana que subjaz decomposta e escancarada sob a lupa poderosa e implacável do autor. A natureza humana, com seus défices éticos, suas trevas conscienciais, seus ímpetos para os atos de vilania. Na mundividência de Orwell, plasmada na alegoria escrita no derradeiro ano da Segunda Guerra Mundial, e rejeitada por vários editores, o homem é o alvo de um libelo-crime acusatório sem atenuantes.

Na sátira do escritor, não remanesce espaço para tibieza ou indulgência ao esfrangalhar as vestes de dissimulação e insídia com que se mascara o réu posto sob o duro julgamento. Esse réu é o homem, ou seja, todos nós, a nossa espécie.

A sublevação dos bichos, instigada por anseios de igualdade e justiça, promete a instauração de regime diverso, destinado a extinguir a fome, a exploração, a tirania. Aliás, toda revolução anuncia uma nova ordem, ou, ao menos, decanta ser esse o seu escopo. Por isso mesmo, no fundo, formula uma promessa, que alimenta sonhos, alicia combatentes, multiplica adesões. As frustrações sobrevêm no ciclo pós-revolucionário. Em geral, não tardam a surgir. Amiúde, o desencanto grassa dentre os engajados mais ardorosos.

É o que se dá no livro de Orwell.  O novo regime, instalado com a rebelião vitoriosa dos bichos, intitulado animalismo, assenta-se em sete mandamentos, à semelhança de um ordenamento constitucional, enunciando-se, no sétimo, que ‘todos os animais são iguais’. Contudo, sem demora, ganha curso o processo que acaba desaguando na expressa alteração do apregoado dogma, com a declaração de que: ‘todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que os outros’. Logo se aguça, em alguns dos bichos, a percepção de que o sonho escorregou para os lodaçais da degradação.

Na granja conquistada pelos animais, os porcos, dotados de maior inteligência, passam a reinar sobre os mais estultos, como as galinhas, as ovelhas e os patos. Implantam um regime de iniquidades e opressão, sob a liderança do porco Napoleão, que possui mesmo um porta-voz (o porco Garganta) encarregado de justificar a sucessão de empulhações do novel governo. Momento marcante da trajetória narrativa se dá na emblemática cena em que o autoproclamado dirigente do Estado animalista (o porco Napoleão), apoiando-se apenas nas duas patas traseiras, munido de chicote, caminha pelo pátio, precedido pelo séquito dos demais suínos, diante dos olhares estarrecidos dos outros bichos.

Visto que as crônicas devem ser escritos curtos, detenhamo-nos no décimo e derradeiro capítulo, no qual é descrita a confraternização entre granjeiros vizinhos (estes, humanos) e meia dúzia de porcos eminentes, membros do ‘governo’ da granja. Ao redor de uma mesa, Napoleão à cabeceira, os convivas jogam cartas. Sob os olhos aparvalhados dos bichos que, de fora, ocultos na escuridão, espiam pela janela, o jogo é interrompido para discursos e brindes e, a seguir, retomado. Os animais, em silêncio, afastam-se quando, sobressaltados pela discussão irrompida no interior da casa, voltam a espreitar, presenciando violenta troca de insultos e murros sobre a mesa. Napoleão e o Sr. Pilkington descartam, simultaneamente, um ás de espadas. Por outras palavras, um dos ases não pertence ao baralho, talvez ambos.

Seis linhas subsequentes, que certamente não são aqui transcritas, fecham o capítulo e a fábula. Os que leram poderão lembrar-se; os que não leram, poderão fazê-lo.

Com remissão a um chavão surrado, alguém tinha ‘uma carta na manga’. Não se descarta (sem trocadilho) que os dois jogadores tivessem o mesmo descarte, cada um, o seu próprio ás de espadas excedente da coleção regular das cartas. Como saber? Orwell não nos revela. Afinal, quem cometeu trapaça? O porco Napoleão? O senhor Pilkington? Ambos?

Ao finalizar esta crônica, impunha-se dar-lhe um título, surgindo, então, invencível dilema: ‘A trapaça dos porcos’ ou ‘A trapaça dos homens’? Qualquer escolha poderia ser interpretada como injusto partidarismo. Optei, ao cabo das contas, pela terceira via: ‘O Ás de Espadas’.

*O autor é procurador de Justiça do Ministério Público de São Paulo, com licenciatura plena em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira. Atuou no radiojornalismo e na imprensa escrita. É membro da Academia Brasileira de Direito Criminal.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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